"Percebo que um pai ou uma mãe prefira que o filho ou a filha tenha uma sexualidade semelhante à sua - entenda lá isso como entender. Percebo até que haja quem considere, por motivos religiosos ou outros quaisquer, incluindo os exclusivamente práticos (a vida é - et por cause - mais difícil para os homossexuais), que gostar de pessoas do mesmo sexo é menos bom do que gostar de pessoas de sexo diferente. O que não consigo de todo compreender é que alguém ache que «reprimir» - ou seja, no caso, ignorar ostensivamente essa possibilidade ou considerá-la depreciativamente - tenha outro resultado que não o de, na melhor das hipóteses, transmitir preconceitos e, na pior, criar infelicidade ou infligir dor. A ideia de que é possível condicionar um filho ao nível das orientações sexuais (...) é de um tal absurdo e de uma tão extraordinária e gratuita crueldade (...), que parece impossível que possa sequer passar pela cabeça de alguém. O problema é que passa. E todos os dias, numa casa perto de nós - talvez na nossa.
De onde, de que lugar medonho vem esta terrível insensibilidade? Que pode justificar que se ignore assim os sentimentos das pessoas por quem é suposto ter-se um amor incondicional? Em nome de que «bem» se faz tanto mal? Suponho que não haja uma resposta satisfatória. A não ser a óbvia: quem faz isto não sonha, na maior parte dos casos, poder fazer mal. É um problema de deficiência imaginativa, de incapacidade empática, de negação primária e paradoxal: aquilo que se quer evitar não pode ser possível. O carácter contraditório e brutal desta atitude é talvez a mais clara evidência da fobia a homossexuais a que se costuma dar o nome de homofobia. Que outra explicação encontar para isto senão a de um medo e de um nojo irracionais?
(...) Para esta gente, a homossexualidade é algo de impensável e os homossexuais são uma espécie de seres mitológicos, aberrações sem sentimentos, a perversidade sobre pernas. A natureza da aversão, que se esgota numa característica tão íntima e inofensiva como a sexualidade (não estamos a falar da pertença a um grupo terrorista, certo?), evoca a fúria sanguinária do fundamentalismo religioso e étnico, a fúria que queima, esfola e mata por reduzir as pessoas a uma característica - a característica de «outro»."
-Fernanda Câncio em Notícias Magazine de 5 de Outubro de 2008.
Não é a primeira vez, nem segunda ou terceira, que me apercebo que a jornalista nutre especial paixão por este tema. Intriga-me um pouco. Este texto é fabuloso, pelo menos para mim, porque acertou em cheio na situação e sentimento que tinha vivido, mais uma vez, poucos minutos antes de o ler. E a intriga que me desperta é: de onde vem esta sabedoria? Já passou pelo mesmo? Tenho a ideia de que este tipo de intervenção, intelectual, vem de um lugar muito comfortável chamado heterossexualidade. Estou certa? É que se estiver, esta mente revela-se extraordinariamente iluminada. E, porque intervém no país que somos, avant la lètre.
Christmas Brandi
10 hours ago
3 comments:
Sim, a FC aborda repetidas vezes esses temas na Noticias Magazine...
Eu que leio a revista esporadicamente já dei de caras com vários artigos.
Sugiro-te no site do DN os artigos dela às 6ªas feiras, todos muito bons também...
Pelo que percebi este "interesse" surge de amigos homossexuais que a senhora terá... Já que ela namora com o sr eng Sócrates (irónico? /desperdício? lol)
cara mia, não penso que seja necessário passar por uma coisa para tentar compreendê-la. a sua perplexidade, porém, lembra-me conversas que tive com homossexuais americanos em 19993, durante a primeira reportagem que fiz sobre este tema, a propósito das discriminação dos homossexuais nas forças armadas americanas. pedia as entrevistas -- lá há imensas associações lgbt, de tudo e mais algum coisa, tipo 'associação dos taxistas gay' e assim --, iniciava-as, e a dada altura vinha a pergunta do entrevistado: 'mas vc é gay, claro?'. e eu: 'claro?' e eles 'se não fosse, porque se interessaria por este assunto?' este pensar 'em gueto' foi uma das coisas que mais me impressionou no movimento lgbt americano. à maioria dos activistas portugueses lgbt que conheço não parece jamais ter ocorrido essa pergunta. o que é bom: eles sabem que a questão é de igualdade, não de diferença.
Claro, nunca pus isso em questão, ou nunca o pretendi. Apenas me impressionou ter posto em palavras o que uma pessoa sente, no caso do texto referido, quando a própria mãe é a maior fonte de preconceito. É uma coisa tão complexa que me transcende. Ou quase. Talvez me transcenda a capacidade de o por em palavras. Ainda bem que há a quem tal não aconteça.
Obrigada.
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